Modelos in vitro: Uma janela para compreender doenças oculares
Gabrieli Bovi dos Santos, Julia de Almeida Pereira e Daniela Naomi I
Laboratório de Neurogenética / Centro de Matemática, Computação e Cognição / Universidade Federal do ABC
Neste artigo, vamos explorar e demonstrar a importância dos modelos in vitro na ciência. Para isso, utilizaremos como exemplo a neurodegeneração associada à Retinose Pigmentar (RP). Antes disso, vamos conhecer um pouco mais sobre essa doença.
A RP é um grupo diverso de doenças oculares hereditárias, transmitidas de geração em geração, que leva à degeneração progressiva das células da retina. Estima-se que cerca de 50.000 pessoas no Brasil tenham RP, com um total de 2.250.000 a 3.600.000 portadores (1). No mundo, a RP é a distrofia hereditária de retina mais comum, com incidência de 1 em cada 5.000 pessoas, afetando aproximadamente 1,5 milhão de pessoas globalmente (2).
Essa degeneração resulta na perda gradual da visão, com sintomas como cegueira noturna, dificuldade para se adaptar à luz, visão em túnel e, frequentemente, cegueira total (3,4). Uma explicação mais detalhada sobre a progressão dessa doença pode ser encontrada no artigo “Uma nova perspectiva no tratamento da cegueira”.
A RP pode ser dividida em duas formas: sindrômica e não sindrômica. Enquanto a RP não sindrômica afeta apenas a visão (cerca de 70-80% dos casos), a RP sindrômica faz parte de um conjunto de sintomas que afetam múltiplos sistemas do corpo (correspondendo a 20-30% dos casos), como exemplificado pela Síndrome de Usher. As mutações que causam a RP podem ter herança autossômica dominante (cerca de 15-25% dos casos), autossômica recessiva (cerca de 5-20%) ou estar ligadas ao cromossomo X (cerca de 5-15%) (2).
Para exemplificar como as mutações podem afetar a retina, focaremos na mutação do gene PDE6β (fosfodiesterase 6 β). Essa mutação tem herança autossômica recessiva, ocorrendo quando um indivíduo herda duas cópias mutadas do gene, uma de cada progenitor. A mutação nessa proteína altera o funcionamento dos fotorreceptores bastonetes, pois ela é essencial para a fototransdução, resultando na morte celular. Nos fotorreceptores saudáveis, a fototransdução é iniciada pela estimulação da luz, envolvendo a molécula sensível à luz, a rodopsina. Quando a luz é absorvida, a rodopsina ativa uma cascata de proteínas, incluindo a PDE6β, o que resulta na diminuição dos níveis de cGMP e no fechamento dos canais iônicos, levando a uma resposta dos fotorreceptores para outras células da retina. Quando ocorre uma mutação no gene PDE6β, a função catalítica da proteína é alterada, resultando no acúmulo de cGMP e no aumento excessivo do cálcio intracelular, o que provoca a morte celular dos bastonetes (5,6) (Figura 1).

Modelos in vitro
Um modelo in vitro de RP, ou de qualquer doença degenerativa, é essencial para o estudo da progressão da condição. Esses modelos auxiliam nos estudos de alterações ontogenéticas (7) e filogenéticas (8) do neurodesenvolvimento, no diagnóstico precoce de doenças como Alzheimer e Parkinson (9), na produção de intervenções terapêuticas gênicas (10), na investigação dos mecanismos bioquímicos envolvidos nas patologias (11) e avaliação de atividade neuroprotetora de compostos testados (12). Isso é possível por serem um ambiente controlado, onde tipos celulares específicos, como as células bastonetes no caso da mutação da PDE6β, podem ser isolados e estudados sem interferências externas. Isso permite que pesquisadores analisem mecanismos celulares e moleculares por trás da enfermidade sem todas as variáveis presentes em um organismo vivo, que podem ser desconhecidas e afetar os resultados do estudo. Ademais, a metodologia in vitro possibilita a manipulação de fatores bioquímicos ou genéticos específicos, facilitando o entendimento de cada componente no desenvolvimento e progressão da doença, além de permitir o desenvolvimento de terapias direcionadas (13).

Assim, modelos in vitro são ótimos instrumentos para estudos de novas terapias ou tratamentos farmacológicos numa etapa prévia às testagens em animais. Por meio deles pode-se observar os efeitos de diversos compostos simultaneamente, facilitando a descoberta de novos fármacos, além de ser possível testar potenciais tratamentos, observando a efetividade ou os efeitos colaterais associados. Essa análise preliminar ainda permite filtrar as possíveis abordagens mais promissoras para posteriores estudos in vivo, o que torna o processo mais econômico, servindo também como uma alternativa aos testes em animais (13).
Há muitos anos os modelos in vitro bidimensionais (2D) têm sido usados como uma excelente forma de simulação para se obter um melhor entendimento de como ocorrem os processos bioquímicos e biofísicos em modelos in vivo de várias doenças, incluindo a RP. Nesse tipo de cultura, as células se aderem a uma superfície lisa, onde conseguem estar igualmente sob as mesmas condições, resultando em crescimento e proliferação homogênea (14). Um ponto negativo a se ressaltar é que em um método 2D não ocorre o controle do formato das células. Consequentemente, há a possibilidade de se obter divergência de resultados uma vez que a estrutura em 2D pode interferir em questões biofísicas, divergindo de características cruciais das observadas in vivo (14). Ademais, as relações célula-matriz extracelular (MEC) e célula-célula são cruciais e estão presentes na metodologia tridimensional (3D), mas não ocorrem da mesma maneira caso seja utilizado um modelo em 2D (15). Além disso, as técnicas em 3D são capazes de simular um ambiente mais próximo do in vivo, sendo mais adequadas para testagem de potenciais fármacos e terapias (16). Nesse tipo de cultura, há possibilidade de obter uma precisão maior na previsibilidade dos diferentes tratamentos e como tais se comportariam em etapas futuras com modelos animais.
Um método utilizado em modelos in vitro 3D envolve o uso de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSC) na confecção de organóides de diversos tipos, inclusive retinianos (9,10). Usualmente, fibroblastos são convertidos em células pluripotentes a partir de um processo de reprogramação celular mediado por fatores de transcrição, permitindo que as células possam ser transformadas em tipos celulares diferentes. Quando formam organóides, as iPSCs se organizam de forma a criar uma estrutura 3D que contém diversos tipos celulares e é capaz de mimetizar a função e organização encontrada in vivo da estrutura desejada, mas com um tamanho reduzido, muitas vezes milimétrico, como uma versão em miniatura do órgão estudado (21). Os organóides retinianos maduros apresentam as células especializadas organizadas estruturalmente de forma similar a encontrada naturalmente, permitindo a visualização das interações entre os diferentes tipos celulares presentes (9, 21). No caso da RP, fibroblastos de animais com a doença podem ser utilizados para a confecção de organóides retinianos com a mutação específica do animal, o que permite a investigação dos mecanismos moleculares específicos da causa subjacente da doença e desenvolvimento de tratamentos direcionados (10).
Fármacos também podem ser utilizados em modelos in vitro para simular as condições da doença. O Zaprinast é um fármaco muito utilizado no caso da RP, uma vez que é um composto que inibe a ação da PDE6β, fazendo com que as células acumulem cGMP e cálcio, mimetizando o efeito da mutação nas culturas neuronais (11). Apesar de eficientes para avaliar se há ação neuroprotetora de outros compostos (12) quanto aos efeitos causados pelo Zaprinast nas células, o modelo de RP induzido por via farmacológica pode apresentar mecanismos bioquímicos e ação diferente da célula naturalmente afetada pela mutação da PDE6β, o que, dependendo da análise a ser realizada na pesquisa, pode ser uma desvantagem.
A partir das metodologias desenvolvidas e validadas nos estudos in vitro, tratamentos seguros e promissores são selecionados para estudos in vivo até que, eventualmente, tornem-se elegíveis para aplicação em humanos. Um modelo em desenvolvimento para o tratamento de doenças que provocam perdas visuais é uma prótese de retina baseada em um chip eletrônico que detecta o estímulo luminoso e gera um sinal elétrico transmitido para os neurônios oculares remanescentes (22, 23). Estudos em pacientes com RP avançada indicaram que o chip favoreceu o reconhecimento de objetos e contraste luminoso, gerando uma melhora significativa das funções visuais (23).
A bioimpressão 3D é outra alternativa, ela usa conhecimentos de engenharia de tecidos para criar possíveis aplicações às mais diversas doenças, incluindo as retinopatias. Ela consiste na construção de camada por camada celular, que imita padrões geométricos observados na natureza com o auxílio de impressoras especializadas e biotintas específicas para cada caso, fazendo uso de material que mimetiza a matriz extracelular incorporando diferentes tipos celulares (17). Esse biomaterial pode se basear em polímeros como o colágeno ou o ácido hialurônico, entre outros. A bioimpressão 3D está evoluindo cada dia mais, sendo uma possibilidade com resultados promissores em estudos recentes envolvendo doenças da retina (19, 20). Estudos animadores já foram capazes de desenvolver um modelo no qual se imprimiu uma camada de epitélio pigmentado da retina (EPM), com sobreposição de outra camada de células fotorreceptoras que conseguiram até expressar marcadores naturais como rodopsina, opsina B e opsina R/G (18). Outro exemplo interessante é um modelo que foi criado para retinopatia relacionada a diabetes, em que houve bioimpressão de uma co-cultura de microglias e células epiteliais, usando como base um hidrogel para mimetizar a MEC (24).
Em conclusão, é notável o papel crucial que os modelos in vitro desempenham nas pesquisas de doenças neurodegenerativas, oferecendo um ambiente de estudo controlado e permitindo a análise isolada de fatores específicos como mutações genéticas ou os efeitos de um potencial tratamento farmacológico. Em especial, as formas 3D estão se popularizando bastante, mas ainda há uma necessidade de expandir e aprimorá-los. O avanço contínuo nessa área é essencial para proporcionar melhores alternativas para o desenvolvimento de terapias, tratamentos e diagnóstico de doenças.
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