O que você sabe sobre o seu “segundo cérebro”?
Autora: Pamela Pinheiro Martins
Correção: Bruna Petrucelli Arruda e Silvia Honda Takada
Ilustração: Helen Indalencio Gomes
Laboratório de Neurohistologia / Centro de Matemática, Computação e Cognição / Universidade Federal do ABC
Nos dias de hoje frequentemente nos deparamos com algum profissional de saúde dizendo o quão importante é cuidar da nossa saúde intestinal, como esse órgão é tão precioso que ganhou o apelido carinhoso de “segundo cérebro”, e a pergunta que fica é: Por quê? O que tem de tão importante em nossos intestinos – um órgão produtor de coisas tão fedidas – que o tornam alvo de interesse de diversos médicos, nutricionistas e pesquisadores das diversas áreas do conhecimento?
Quando olhamos superficialmente, o intestino nada mais é do que um local em que os alimentos que comemos são processados para que água e nutrientes sejam absorvidos por nosso organismo, enquanto que aquilo que não é útil seja jogado fora na forma de fezes.
Entretanto, quando observado microscopicamente, é possível notar que nosso simples intestino é na verdade inervado por milhares de neurônios que não necessariamente precisam das ordens vindas do sistema nervoso central (SNC) para funcionar ¹. Assim, cerca de 400 a 600 milhões de neurônios compõem o sistema nervoso entérico (SNE) e se encontram localizados nos plexos mioentérico e submucoso das paredes do intestino, sendo responsáveis por protagonizar os movimentos peristálticos e modular a atividade secretória e imunológica 2, 3.
Além disso, o SNE se comunica com os microorganismos que povoam nosso intestino. A microbiota contida nessa região produz diferentes metabólitos – dentre eles, neurotransmissores – que interagem com as sinapses locais, o que pode resultar em um efeito distal no SNC 1, 4 . Atualmente, é bem documentado o forte impacto que neurotransmissores produzidos pela microbiota intestinal têm sobre a função cerebral, e seu impacto na fisiopatologia de diferentes transtornos como depressão e ansiedade 5.
Dentre as substâncias produzidas por nossa microbiota, mas também por nossas células intestinais está a serotonina. Interessantemente, 95% desse neurotransmissor tão importante para nosso estado de humor é produzido no intestino, seja pelas células enterocromafins ou por nossa microbiota, através do triptofano obtido pela ingestão de alimentos 6. Assim, a serotonina produzida no intestino é responsável por regular as funções motoras, secretórias e sensitivas intrinsecamente através dos neurônios presentes no SNE ou de modo extrínseco, através das divisões simpáticas e parassimpáticas do sistema nervoso autônomo (SNA) que controlam a intensidade do processo digestório através da manutenção do tônus muscular 2, 7.
Em nosso cérebro, a serotonina é famosa por seu efeito no humor, sendo denominada de “neurotransmissor da felicidade”, mas também possui papel crucial na memória, influência em emoções como raiva e medo, em condições como estresse e vícios, além de funções na boa gestão de sono, na percepção de dores, no tônus vascular cerebral e na regulação do centro respiratório localizado no bulbo, presente no tronco encefálico 1, 4, 8.
Claro que, não apenas a serotonina, mas uma gama de neurotransmissores são produzidos no intestino, como a adrenalina, o ácido gama-aminobutírico (GABA), norepinefrina, dopamina e acetilcolina 5, 9, evidenciando o intestino como um órgão muito mais complexo do que se pensava ser e sugerindo que distúrbios nesse local tenham relações muito estreitas com transtornos mentais.
Assim, estudos vêm sendo desenvolvidos com o objetivo de compreender se de fato uma perturbação intestinal pode impactar em doenças neurológicas e até mesmo responder a uma questão intrigante: Uma desordem neurológica poderia começar no intestino?
Pode parecer algo muito distante, uma determinada situação no intestino afetar o cérebro, mas é comumente visto diferentes sintomatologias gastrointestinais em indivíduos com desordens neurológicas 10, 11. Por exemplo, em crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), já foi relatado que a severidade do problema intestinal – por exemplo, constipação, dor abdominal e diarréia – está positivamente relacionada ao grau de severidade dos sinais comportamentais nessas crianças 12, 13. E uma possível explicação seria o aumento da permeabilidade da barreira intestinal, a qual tem a função de impedir que substâncias danosas sejam absorvidas pelo intestino e entrem na circulação sanguínea 14. Isso foi observado por Rose e colegas, cujas crianças com TEA e complicações gastrointestinais possuem elevados níveis de uma proteína chamada zonulina, que no intestino atua modulando a barreira intestinal, diminuindo o seu critério de discriminação molecular14, 15. Assim, quando os níveis de zonulina no sangue das crianças se mostram altos, a barreira intestinal é alterada, o que leva a uma ativação imunológica que termina em inflamação, seja de modo sistêmico ou no SNC, que recebe essa informação via SNE e nervo vago 2, 3, 14.
Ainda, pesquisadores que questionam se doenças mentais podem ser desencadeadas por alterações intestinais exploram diferentes vertentes em relação às patologias que preocupam e assombram as expectativas futuras em nossa sociedade. Pode parecer absurdo à primeira vista, mas Kim e colegas testaram a hipótese de que a alfa-sinucleína – uma proteína cujo acúmulo em neurônios dopaminérgicos localizados na substância nigra é característica da doença de Parkinson – pode estar presente no intestino e que sua alteração levariam a uma disseminação para o cérebro 16.
Para testar essa ideia, foi realizada a injeção de uma alfa-sinucleína exógena em uma região do estômago e do intestino de camundongos C57BL/6J. Um grupo recebeu apenas as injeções, ao passo em que um segundo grupo recebeu as injeções e passou por um processo de vagotomia em que os pesquisadores interromperam a comunicação intestinal e cerebral com uma incisão do nervo vago próximo ao intestino 16. Curiosamente, os pesquisadores observaram que a alfa-sinucleína exógena aplicada no intestino alterava a própria alfa-sinucleína dos animais, e não apenas isso, mas o cérebro desses animais mostravam o acúmulo dessa proteínas em neurônios dopaminérgicos, ocasionando morte celular e refletindo em perda da força muscular, do controle motor e em déficits de memória. De forma contrária, os animais que receberam as injeções e foram vagotomizados, não tiveram a disseminação da alfa-sinucleína e seus efeitos 16.

Podemos ver então que a relação entre nosso cérebro e intestino é deveras estreita e existem diferentes vias pelas quais um órgão pode modular o outro, como visto por Kim através do nervo vago, e visto por Rose através da permeabilidade intestinal e a própria circulação sanguínea que propaga sinais inflamatórios que impactam diretamente a função do SNC.
Em situações cotidianas, uma gama de fatores pode influenciar o eixo cérebro-intestino, tais como medicamentos, hábitos alimentares, a quantidade de água que tomamos, os locais que frequentamos e até mesmo as pessoas que estão envolvidas em nosso círculo social 1, 3, 4, 17. Tudo isso afeta nossos níveis de hormônios relacionados ao estresse, a composição da nossa microbiota e as substâncias produzidas por ela 5, 6. Ou seja, um intestino saudável, é um cérebro mais feliz!
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