Pesquisadores descobrem células do mesencéfalo especializadas no consumo e na busca de alimentos

Renata da Silva Jorge ¹ e Silvia Honda Takada ²

¹ Laboratório de Neurogenética, Universidade Federal do ABC

² Grupo de Pesquisa em Asfixia Perinatal e Neurodesenvolvimento (GAsPN), Universidade Federal do ABC

“O mínimo para viver” é um longa que conta a história de uma jovem com anorexia nervosa e seus enfrentamentos para driblar o transtorno alimentar. O filme é estrelado pela atriz Lilly Collins, que inclusive sofreu com a mesma doença de sua personagem durante a adolescência. De acordo com um estudo publicado no JAMA PEDIATRICS (Journal of American Medical Association), mais de um quinto da população jovem, entre 6 e 18 anos, apresenta algum tipo de transtorno alimentar. As evidências foram coletadas de 32 estudos realizados em 16 países, incluindo o Brasil [1]. Ainda, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria, estima-se que por volta de 70 milhões de pessoas no mundo sejam afetadas por algum tipo de transtorno alimentar, como anorexia e compulsão alimentar, sendo a população mais afetada a de mulheres jovens [2].

Essa estatística alarmante, associada ao fato de o comportamento alimentar ser vital aos seres vivos, mostra a relevância de estudos científicos como aquele desenvolvido pelo grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), da Universidade de Harvard e da Universidade Federal do ABC (UFABC), que descobriu, de maneira inédita, uma população de neurônios específica envolvida no consumo de alimentos e, mais do que isso, se debruça sobre o papel destas células em circuitarias complexas relacionadas ao comportamento alimentar. O estudo em questão, “Control of Feeding by a bottom-up midbrain-subthalamic pathway”, foi publicado em 2024, no periódico Nature Communications, sob coordenação do neurocientista brasileiro Avishek Adhikari, atualmente pesquisador da UCLA. A pesquisa ainda conta com a participação em peso de diversos neurocientistas brasileiros, como o principal autor e atual pesquisador da UCLA, Fernando Reis; a pesquisadora da USP, Juliane Ikebara, mestre e doutora em Neurociência e Cognição pela UFABC; e o professor e pesquisador da UFABC Alexandre Kihara [3].

A região-alvo deste estudo é denominada matéria cinzenta periaquedutal (PAG, do inglês periaqueductal gray matter), e está localizada no tronco encefálico, mais especificamente no mesencéfalo. “Estudos anteriores demonstraram que esta é uma estrutura relacionada principalmente com comportamento defensivo, mas que em estudos mais recentes,  a região também atua em comportamento exploratório e de caça. No entanto, em uma mesma região há diferentes tipos de neurônios, que desempenham diferentes funções” diz Juliane. Os neurônios podem ser classificados como excitatórios ou inibitórios de acordo com o efeito que exercem sobre outros neurônios que recebem projeções desses. Enquanto neurônios excitatórios facilitam disparos de potenciais de ação, os inibitórios reduzem a probabilidade destes disparos e possuem uma importante função de modular a atividade de outros neurônios.

O primeiro objetivo do grupo foi avaliar se neurônios GABAérgicos – um tipo abundante e específico de neurônio inibitório que libera o neurotransmissor ácido gama-aminobutírico (GABA) -, da PAG lateral e ventrolateral teriam relação com comportamentos de busca e consumo de alimentos em camundongos. Para isto, foi utilizada uma técnica de imageamento de cálcio, que permite avaliar a atividade neuronal in vivo. Os cientistas injetaram um vírus em um camundongo geneticamente modificado na PAG, para transfectar neurônios GABAérgicos, fazendo com que eles expressassem uma proteína que emite fluorescência na presença de cálcio. Assim, quando as células estavam ativas, havia o influxo de cálcio, mudando a conformação da proteína, de modo que ela emita uma fluorescência, tal como um sensor, permitindo aos cientistas identificarem, através de um mini microscópio (miniscope), quais células respondiam a determinado estímulo. Deste modo, quando os animais foram colocados em um ambiente com disponibilidade de alimentos, foi observada maior ativação de neurônios GABAérgicos quando eles buscavam e consumiam tais alimentos.

Uma vez constatada a maior ativação destes neurônios durante a busca e consumo de alimentos, o grupo utilizou outra técnica, denominada optogenética, para manipular estas células enquanto o animal desempenhava tarefas específicas. Para isto, os pesquisadores injetaram um vírus específico para optogenética na mesma região. Este vírus transfecta neurônios GABAérgicos e faz com que eles expressem proteínas fotossensíveis em suas membranas celulares, conhecidas como opsinas. Quando expostas à luz de determinadas frequências, as opsinas respondem gerando uma mudança de voltagem na membrana celular, permitindo aos cientistas controlar a ativação ou a inibição de neurônios de interesse. Como resultado, quando os camundongos foram colocados em um ambiente com alimentos disponíveis e os pesquisadores inibiram os neurônios GABAérgicos da PAG através da optogenética, os animais apresentaram redução no consumo de alimentos. Por outro lado, a excitação destas mesmas células fez com que os animais se tornassem mais motivados na busca por alimentos, explorassem mais o ambiente e, surpreendentemente, aumentassem o consumo de alimentos calóricos, independente se estivessem ou não com fome. Além disso, quando colocados em uma caixa com dois compartimentos, um seguro e um aversivo no qual recebiam um leve choque nas patas, os camundongos preferiram enfrentar o compartimento aversivo para obter o alimento como recompensa.

Por fim, os pesquisadores buscaram avaliar se estes mesmos neurônios estariam conectados com outros circuitos amplamente relacionados ao comportamento alimentar e de que modo seria essa conexão. Para isto, foram utilizadas duas técnicas conhecidas como traçamento neuronal retrógrado e anterógrado. Simplificadamente, na técnica de traçamento neuronal retrógrado, os neurônios GABAérgicos da PAG lateral e ventrolateral são transfectados com um vírus que permite a visualização de neurônios de outras regiões que se projetam para a PAG. Por outro lado, na técnica de traçamento neuronal anterógrado, os corpos celulares dos neurônios da PAG são transfectados com um vírus que permite a visualização de suas projeções para outras regiões do cérebro. Assim, foi observado que a PAG tanto recebe quanto envia projeções para diversas regiões relacionadas com caça, forrageamento (que é a busca por alimentos) e controle alimentar, como a área pré-óptica medial, amígdala central, hipotálamo lateral, o núcleo do leito da estria terminal (região próxima ao tálamo) e a Zona Incerta (região do subtálamo). E, surpreendentemente, quando as projeções dos neurônios GABAérgicos da PAG para a Zona Incerta são estimuladas com optogenética, os animais aumentam o consumo de alimentos.

Fazendo alusão com o que mais comumente se observa nos transtornos alimentares, é como se uma menor ativação dos neurônios GABAérgicos dessa região do mesencéfalo estivesse relacionada aos sintomas presentes em quadros anorexia, nos quais o indivíduo apresenta uma redução da fome e o ato de se alimentar se torna desagradável. Por outro lado, uma maior ativação destes neurônios estaria mais relacionada aos quadros de compulsão alimentar, nos quais o indivíduo apresenta um consumo alimentar excessivo, mesmo que as consequências disso não sejam agradáveis. Mas, você deve estar se perguntando qual a relevância de um estudo realizado em animais para o estudo de transtornos psiquiátricos observados na espécie humana. Juliane enfatiza que, “o uso de animais, especialmente de roedores, ainda é extremamente importante para a pesquisa básica, que antecede estudos clínicos em humanos. Além da facilidade no manuseio e a existência de diversos modelos que mimetizam doenças humanas, o genoma de camundongos apresenta grande similaridade com o genoma humano, principalmente em regiões que codificam proteínas” .

Assim, os achados deste estudo oferecem uma nova perspectiva sobre os mecanismos neurais subjacentes ao comportamento alimentar, destacando o importante papel dos neurônios GABAérgicos da matéria cinzenta periaquedutal lateral e ventrolateral do mesencéfalo no controle e na busca por alimentos. Essas descobertas são muito relevantes para o estudo de transtornos alimentares, que impactam cotidianamente na vida de milhares de pessoas ao redor do mundo. Continuar explorando essas circuitarias neurais e novos agentes, assim como investigar suas possíveis implicações clínicas e terapêuticas, é essencial para avançar em direção a uma compreensão mais profunda do assunto e à mitigação de condições debilitantes como anorexia e compulsão alimentar.

Referências

[1] A Systematic Review and Meta-analysis . JAMA Pediatr. 2023;177(4):363–372. doi:10.1001/jamapediatrics.2022.5848

[2] Balasundaram P, Santhanam P. Eating Disorders. 2023 Jun 26. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2024 Jan–. PMID: 33620794.

[3] Reis FMCV, Maesta-Pereira S, Ollivier M, Schuette PJ, Sethi E, Miranda BA, Iniguez E, Chakerian M, Vaughn E, Sehgal M, Nguyen DCT, Yuan FTH, Torossian A, Ikebara JM, Kihara AH, Silva AJ, Kao JC, Khakh BS, Adhikari A. Control of feeding by a bottom-up midbrain-subthalamic pathway. Nat Commun. 2024 Mar 7;15(1):2111. doi: 10.1038/s41467-024-46430-5. PMID: 38454000; PMCID: PMC10920831.

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